Avanço Institucional e Retrocesso Cultural: o paradoxo brasileiro da proteção de dados

Reconhecimento europeu da LGPD contrasta com queda no conhecimento sobre privacidade no Brasil

Por Enio Klein

Nos últimos meses, duas notícias colocaram o Brasil no centro do debate internacional sobre privacidade e segurança da informação. De um lado, a Comissão Europeia publicou, em setembro de 2025, uma decisão preliminar reconhecendo a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e o padrão regulatório brasileiro como equivalentes ao Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR) europeu (CISO Advisor, 05/09/2025). De outro, o National Privacy Test (NPT) 2025, conduzido pela NordVPN em 186 países, revelou que o conhecimento da população brasileira em privacidade e segurança digital recuou em quase todos os indicadores avaliados.

Esse contraste revela um paradoxo: avançamos institucionalmente, mas retrocedemos culturalmente.

O reconhecimento europeu: avanço institucional

O reconhecimento preliminar da Comissão Europeia representa um marco. Ao admitir que o Brasil possui arcabouço jurídico e institucional comparável ao europeu, o país passa a ser considerado “jurisdição adequada” para transferências internacionais de dados. Isso traz segurança jurídica às relações comerciais, reduz a necessidade de instrumentos contratuais adicionais e posiciona a LGPD como ativo de competitividade internacional.

Na prática, significa que as normas estão bem desenhadas. A existência da ANPD, os mecanismos de responsabilização previstos na lei, e a inspiração clara no GDPR reforçam a robustez do modelo brasileiro. Para empresas globais, é uma sinalização positiva: podem confiar que o Brasil dispõe de um padrão normativo compatível com os mais exigentes.

O recuo cultural: fragilidade interna

O NPT 2025, contudo, mostra outro cenário. O Brasil obteve 54 pontos, contra 57 da média global, e perdeu três pontos em relação a 2024. O índice de consciência sobre privacidade caiu para 48, o menor desempenho entre as áreas avaliadas.

Outros indicadores reforçam a vulnerabilidade: apenas 27% reconhecem sites de phishing (antes 34%), 43% detectam URLs falsas (antes 49%), 11% sabem avaliar riscos no uso da inteligência artificial no trabalho e 13% protegem adequadamente o Wi-Fi doméstico. Ao mesmo tempo, cresceu o número de “Cyber Tourists” (29%) e “Cyber Wanderers” (2%), perfis de usuários com pouco ou nenhum conhecimento digital.

Em termos sociológicos, o dado mostra que, embora o Brasil tenha leis de primeira linha, a sociedade ainda não internalizou a cultura de proteção de dados. A população aprende a lidar com golpes simples, mas permanece vulnerável em áreas estratégicas, criando um terreno fértil para crimes digitais mais sofisticados.

O paradoxo brasileiro

Esse descompasso institucional-cultura não é inédito, mas merece atenção. Ele mostra como a regulação pode se distanciar da prática social. Enquanto o reconhecimento europeu reforça a legitimidade da LGPD no plano normativo, a pesquisa da NordVPN sugere que a lei ainda não transformou o comportamento cotidiano de cidadãos, organizações e até de profissionais da área.

Para conselhos de administração e lideranças empresariais, isso significa que a simples conformidade legal não basta. Sem cultura organizacional robusta, sem treinamento contínuo e sem indicadores de maturidade digital, a LGPD pode se tornar um “compliance de vitrine”, mais voltado a satisfazer exigências externas do que a proteger efetivamente dados pessoais.

Para reguladores, o paradoxo é ainda mais delicado: de um lado, a chancela europeia valida a arquitetura legal brasileira; de outro, a queda na consciência de privacidade exige políticas públicas de educação digital em larga escala, integradas ao sistema educacional, programas corporativos e iniciativas comunitárias.

E para a sociedade civil, permanece o desafio de compreender que a proteção de dados é direito, mas também dever de cidadania. Sem conhecimento, titulares não exercem seus direitos, reduzindo a pressão social sobre empresas e governos para respeitar a lei.

Conclusão: alinhar norma e cultura

O Brasil vive hoje um paradoxo revelador: somos reconhecidos externamente como maduros, mas internamente ainda frágeis. O reconhecimento europeu deve ser lido como um voto de confiança condicional, que precisa ser transformado em prática efetiva.

Se conseguirmos alinhar avanço institucional e avanço cultural, consolidaremos a LGPD como um verdadeiro ativo estratégico nacional, capaz de gerar confiança, competitividade e cidadania digital. Se não, permaneceremos no risco de ser lembrados como o país de leis avançadas e práticas frágeis — uma contradição insustentável no mundo hiper conectado.

📚 Fontes:

  • CISO Advisor. Padrão brasileiro de proteção de dados avança na Europa. Publicado em 05/09/2025.
  • NordVPN. National Privacy Test 2025. Dados divulgados em 17/09/2025 (CISO Advisor).

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