por Yvie Nunes

Setembro Amarelo virou um ritual para empresas: distribuir cartazes, e-mails, palestras rápidas sobre prevenção ao suicídio. Mas, na maioria dos casos, essas ações são cosméticas — luzes de emergência que piscam uma vez por ano, para mostrar que “nos importamos”, enquanto a estrutura organizacional continua adoecendo pessoas todos os dias.
Vou levantar alguns dados — porque não é teoria, é prática —, mostrar os mecanismos que adoecem, apontar o que falta, e exigir: se for pra falar de saúde mental, que se façam mudanças de verdade.
Dados que não mentem
- Afastamentos por transtornos mentais ultrapassaram 400 mil em 2024
No Brasil, em 2024, ocorreram mais de 400 milcasos de afastamento do trabalho por transtornos mentais. Os diagnósticos que mais apareceram foram transtornos ansiosos e episódios depressivos — juntos somam mais de 255 mil benefícios concedidos. ([Brasil 61][1]) - Crescimento expressivo recente
Entre 2022 e 2023, os benefícios por incapacidade relacionados a transtornos mentais e comportamentais subiram de ~209 mil para ~289 mil — um crescimento de 38%. ([institutoaron.com.br][2]) - Burnout, ansiedade, depressão dominam as causas
Empresas brasileiras relatam que os principais diagnósticos que resultam em afastamentos são: ansiedade, depressão e estresse. Em uma pesquisa da Conexa, por exemplo, 87% das corporações afirmaram ter tido afastamentos desses tipos, com ansiedade como líder (51%), seguida por depressão (17%), estresse (16%) e síndrome de Burnout (14%). ([comsaudebahia.com.br][3]) - Poucas empresas realmente estruturam políticas permanentes
- Segundo dados da Isma-BR, apenas ~18% das empresas tinham algum tipo de programa focado em saúde mental dos empregados. ([ANAMT][4])
- Embora a NR-1 (Norma Regulamentadora nº 1, que trata de gestão de riscos no trabalho) esteja sendo atualizada para incluir riscos psicossociais, isso está sendo feito muito lentamente e com poucas exigências práticas até o momento. ([Feebpr][5])
- Cultura organizacional e condições de trabalho agravam o problema
Aspectos como jornadas excessivas, metas abusivas, pressão por resultados imediatos, falta de reconhecimento, insegurança no emprego, vínculos informais, assédio moral ou psicológico, pouco suporte da gestão — tudo isso é amplamente reportado e associado ao adoecimento. ([Serviços e Informações do Brasil][6])
Mecanismos invisíveis — como as empresas adoecem
Nem sempre a empresa “manda adoecer”. Muitas vezes ela cria o ambiente em que adoecer se torna inevitável:
- Pressão por produtividade sobre-humana, com metas que ignoram limites humanos.
- Jornadas de trabalho longas ou difusas, especialmente com o home office: misturar horário, expectativas de disponibilidade 24/7, interrupções constantes.
- Falta de clareza nas funções — o que cada gestor espera, prioridades, quais critérios estão sendo avaliados. A ambiguidade gera ansiedade.
- Problemas de liderança: chefias que cobram mas não apoiam, gestores sem capacitação para lidar com sofrimento emocional, sem percepção de sinais de burnout ou depressão.
- Estigma e silenciamento: pessoas que têm medo de admitir que estão doentes por medo de represálias, demissão, de parecerem “fracas”.
- Programas simbólicos que se limitam a palestras ou adesivos — o “mental washing”, como se cuidar da saúde mental fosse só uma questão visual ou de marketing, não de cultura, práticas e estrutura de suporte.
Setembro Amarelo: janela ou encenação?
Setembro Amarelo pode ser útil como alerta social — sim. Porém, quando as empresas concentram suas ações apenas nesse mês, sem compromisso de transformar:
- as campanhas ficam soltas, descontextualizadas;
- as pessoas veem o gesto, mas não sentem mudança concreta;
- o esforço simbólico mascara déficits reais: ambiente tóxico, ausência de políticas permanentes de saúde mental, negligência das lideranças.
Em muitos casos, é exatamente o contrário do que se necessita: camuflar responsabilidades, evitar custos (sic): não investir em saúde ocupacional, em psicólogos internos ou convênios acessíveis, em jornadas dignas, em suporte psicossocial contínuo.
Consequências reais
Quando isso acontece, os danos são múltiplos:
- Sobrecarga emocional, angustia, sofrimento psicológico persistente.
- Aumento do absenteísmo e dos afastamentos de médio e longo prazo — o custo para a empresa em benefícios, substitutos, perda de produtividade.
- Turnover alto — pessoal saindo, novo entrando, investimento em treinamento desperdiçado.
- Presenteísmo: funcionário “presente” fisicamente, mas sem condições de produzir plenamente, ou estando emocionalmente esgotado. Isso esconde o problema, dificulta reconhecimento.
- Diminuição do engajamento, do clima organizacional, da criatividade e inovação, piora da qualidade de serviço/produto.
- Desgaste da reputação: quando funcionários compartilham suas experiências negativas, isso pesa na opinião pública, dificulta atração e retenção de talentos.
O que de fato deveria mudar
Não basta levantar bandeira. Aqui vai o essencial que precisa ser cobrado:
- Políticas de saúde mental integradas e permanentes – não só palestras em setembro, mas suporte contínuo. Psicólogos disponíveis, canais de denúncia ou acolhimento, programas de prevenção.
- Capacitação de lideranças – ensinar gerentes a reconhecer sinais de sofrimento, a dialogar sem julgamento, a ajustar expectativas, a apoiar.
- Ambiente de trabalho justo – metas realísticas, jornada adequada, respeito ao tempo fora do expediente, remuneração decente, vínculo seguro.
- Avaliação de riscos psicossociais – incluir isso na gestão de saúde & segurança do trabalho, como parte obrigatória e fiscalizada, com monitoramento real.
- Remoção de estigmas – campanhas reais de sensibilização, anonimato seguro para pedir ajuda, evitar penalizações veladas.
- Feedback contínuo, acompanhamento emocional – mais do que KPIs de performance, ter indicadores de bem-estar, reuniões regulares de acompanhamento que considerem saúde mental.
Conclusão
Empresas precisam decidir: querem realmente cuidar de seus funcionários ou apenas manter uma imagem limpa durante um mês? Se o Setembro Amarelo serve só de fachada, o resultado é duplo:
- adoecem quem nelas trabalha,
- e reforçam o cinismo da sociedade: “ah, mas a empresa fez campanha, não pode reclamar”.
Chega de encenação. Quem assume cargo de liderança deve assumir também a responsabilidade de estrutura — cultural, material, humana — para que o cuidado com saúde mental não seja um anúncio, mas uma prática diária.
Fontes:
[1]: https://brasil61.com/n/afastamento-do-trabalho-por-transtornos-mentais-ultrapassaram-400-mil-em-2024-bras2513458?utm_source=chatgpt.com “Afastamento do trabalho por transtornos mentais ultrapassaram 400 mil em 2024 | Brasil 61″[2]:https://www.institutoaron.com.br/blog/noticias-/sobe-para-38-nos-afastamentos-por-transtornos-mentais-no-trabalho-um-desafio-para-o-mundo-corporat/146?utm_source=chatgpt.com “Sobe para 38% nos afastamentos por transtornos mentais no trabalho: um desafio para o mundo corporat – Instituto Aron”[3]:https://comsaudebahia.com.br/pesquisas-mostram-aumento-de-profissionais-com-doencas-mentais-nas-empresas/?utm_source=chatgpt.com “Pesquisas mostram aumento de profissionais com doenças mentais nas empresas – Portal ComSaúde Bahia”[4]:https://www.anamt.org.br/portal/2021/09/20/setembro-amarelo-so-18-das-empresas-focam-em-saude-mental/?utm_source=chatgpt.com “Setembro Amarelo: só 18% das empresas focam em saúde mental – ANAMT”[5]:https://www.feebpr.org.br/noticia/Hdn1-afastamento-do-trabalho-por-transtornos-mentais-ultrapassaram-400-mil-em-2024?utm_source=chatgpt.com “Afastamento do trabalho por transtornos mentais ultrapassaram 400 mil”[6]:https://www.gov.br/conselho-nacional-de-saude/pt-br/assuntos/noticias/2023/abril/transtornos-mentais-e-adoecimento-no-ambiente-de-trabalho-como-enfrentar?utm_source=chatgpt.com “Transtornos mentais e adoecimento no ambiente de trabalho: como enfrentar? — Conselho Nacional de Saúde”