Biometria + IA: modernização tecnológica ou bomba-relógio regulatória?

A combinação entre biometria e IA pode reforçar a segurança — ou abrir caminho a fraudes em escala inédita.

Por Enio Klein

A biometria se consolidou como um dos grandes símbolos da modernização digital. Reconhecer um rosto, uma íris ou uma impressão digital em segundos transmite ao usuário uma sensação de segurança, conveniência e até futurismo. Aliada à inteligência artificial, essa tecnologia pode se tornar ainda mais poderosa, reduzindo fraudes de identidade, acelerando processos de autenticação e oferecendo experiências fluidas em setores críticos como saúde, finanças e governo digital.

De fato, há vantagens inegáveis. Para o usuário comum, não precisar decorar senhas ou carregar cartões já representa um ganho de usabilidade. Para empresas, a promessa é de reduzir custos com fraudes, reforçar a conformidade regulatória e oferecer diferenciais competitivos em mercados altamente disputados. O casamento entre biometria e IA tem potencial para elevar a segurança e simplificar interações, se — e apenas se — for bem governado.

Mas esse mesmo potencial abre espaço para riscos que não podem ser ignorados. A biometria, diferente de uma senha, é imutável: não se troca de rosto, de voz ou de digital. Se tais dados forem comprometidos, o dano é permanente. A IA, por sua vez, pode ser usada para criar deepfakes e simulações quase perfeitas, explorando justamente os sistemas que deveriam reforçar a proteção. É a contradição de transformar a chave da segurança no alvo preferencial dos fraudadores.

Outro ponto crítico é a proporcionalidade. Nem todo processo exige uma autenticação biométrica reforçada. Forçar sua adoção em situações cotidianas gera atrito, exclusão e viola a lógica da minimização de dados prevista na LGPD. Idosos, pessoas com limitações motoras ou quem simplesmente não tem acesso a dispositivos modernos acabam sendo penalizados em nome de um “modernismo” que serve mais ao marketing do que à segurança real.

O risco maior está no que chamo de “efeito bomba-relógio”: quanto mais biometria coletamos e centralizamos, mais combustível oferecemos para ataques massivos. Com IA, fraudadores podem amplificar a escala de golpes, criando identidades digitais falsas capazes de enganar sistemas antes vistos como infalíveis. O que hoje parece avanço pode, em pouco tempo, se tornar um vetor de vulnerabilidade sistêmica.

Isso não significa demonizar a biometria ou a IA. Significa exigir que seu uso seja regido por princípios claros: necessidade, proporcionalidade, governança e transparência. Implementações devem ser auditáveis, as alternativas precisam existir (para não excluir cidadãos) e o dado sensível precisa ser protegido por camadas de criptografia, monitoramento e controles rígidos de retenção e acesso. Segurança não é um produto, é um processo contínuo.

E aqui está a pergunta que não podemos evitar: vale a pena correr esses riscos? A resposta depende de como governos, empresas, lideranças e conselhos escolhem equilibrar inovação e responsabilidade. Se a biometria e a IA forem usadas de forma consciente e controlada, os ganhos podem ser significativos. Mas se forem tratadas como fetiches tecnológicos, estaremos apenas acelerando a contagem regressiva de uma bomba que pode explodir no rosto — literalmente — da sociedade.

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