O que está por trás do rosto: Biometria, IA e o risco invisível que cresce no cotidiano

Por Enio Klein

O reconhecimento facial deixou de ser um recurso futurista para se tornar uma tecnologia do cotidiano. Está nos celulares, nas câmeras de segurança, nos acessos de edifícios e, cada vez mais, nos espaços que deveriam representar privacidade e autonomia: nossas próprias casas.

Reportagem recente do G1 expôs o uso crescente de sistemas de reconhecimento facial em condomínios residenciais, muitas vezes implementados sem consulta ou consentimento claro dos moradores. O argumento é quase sempre o mesmo: aumentar a segurança e modernizar o controle de acesso. Mas, por trás desse discurso, cresce um risco silencioso — a normalização da coleta biométrica sem governança, transparência ou limites éticos claros.

Vivemos uma era em que vídeos que demonstram o “poder da inteligência artificial” viralizam com facilidade. Cenas de portas que se abrem com um olhar, câmeras que localizam suspeitos em segundos ou algoritmos que identificam padrões com precisão milimétrica são apresentadas como demonstrações do avanço tecnológico — e ganham aplausos. Mas esse fascínio raramente vem acompanhado de um olhar crítico sobre o que sustenta esse espetáculo: bases massivas de dados biométricos, muitas vezes coletados sem consentimento, processados sem transparência e armazenados com fragilidade.

A biometria, especialmente o reconhecimento facial, está entre os motores mais visíveis da IA. Para funcionar, depende de dados profundamente sensíveis: traços do rosto, impressões digitais, padrões de voz, íris. Diferente de uma senha, esses dados não podem ser alterados se forem vazados — e os vazamentos têm se multiplicado. Casos incluem bancos de dados comerciais expostos em ataques hacker, sistemas públicos de vigilância que capturam rostos sem autorização e aplicativos que acumulam biometria sem informar claramente seus usuários.

O paradoxo é evidente: tecnologias que prometem proteger estão, cada vez mais, fragilizando a segurança que deveriam garantir. E o uso da biometria em ambientes residenciais, como mostra a matéria do G1, escancara esse paradoxo. O que deveria ser um espaço de proteção e escolha — o lar — se transforma em um ponto de coleta permanente de dados sensíveis. Muitas vezes, sem que o morador saiba como, onde ou por quem suas informações estão sendo usadas.

Nesse contexto, o problema deixa de ser técnico ou operacional. Torna-se estratégico. A governança da IA e da biometria precisa ser pensada com maturidade regulatória, ética e institucional. E isso exige que conselhos, lideranças empresariais e agentes públicos abandonem a falsa ideia de que inovação e proteção de direitos são forças opostas.

A resposta está na integração de três funções essenciais de regulação: controlar, guiar e incentivar.

Controlar, onde o risco exige firmeza, como no uso de biometria em ambientes de moradia, educação, saúde ou justiça. Esses espaços demandam limites claros, base legal sólida e, sobretudo, respeito à autodeterminação informativa das pessoas.

Guiar, com valores éticos desde o início. Tecnologias que tocam dimensões tão sensíveis da vida humana precisam ser projetadas com princípios como justiça, não discriminação, transparência e respeito à privacidade — e não apenas com foco em eficiência.

Incentivar, onde boas práticas podem se consolidar com apoio do mercado e da reputação institucional. Auditorias independentes, selos de proteção de dados, cláusulas contratuais bem estruturadas e compras públicas responsáveis podem transformar a biometria em uma ferramenta segura — e não em um risco silencioso.

Sem esse equilíbrio, continuaremos a assistir à IA como espetáculo, encantados com seus efeitos visuais e práticos, enquanto a estrutura invisível que a sustenta — os dados de milhões de pessoas — segue sendo explorada sem proteção adequada.

Conselhos e líderes precisam, urgentemente, sair da plateia e assumir o papel de curadores do futuro digital. Isso não significa interromper a inovação, mas guiá-la por caminhos justos, sustentáveis e, acima de tudo, conscientes. O verdadeiro poder da IA não está nos vídeos que viralizam, nem nos acessos automatizados. Está nas escolhas institucionais que protegem pessoas, respeitam seus dados e constroem confiança pública em tecnologias que, ao mesmo tempo, fascinam e exigem responsabilidade.

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