Por Enio Klein
Vivemos em uma sociedade funcionalmente viciada — mas sem perceber. O objeto do vício mudou: já não é uma substância química, mas a tela na palma da mão. A dependência não vem da seringa, mas do feed. O que antes chamávamos de vício agora atende por nomes mais palatáveis: engajamento, personalização, conveniência. Mas o efeito é o mesmo — um ciclo contínuo de estímulos e respostas que sequestra o que temos de mais humano: a vontade. Há tempos discutimos os impactos da tecnologia na sociedade — mas talvez estejamos subestimando uma conexão inquietante: a semelhança entre o uso intensivo de dados pessoais e o efeito de drogas psicotrópicas no comportamento humano.
A analogia pode parecer ousada, mas é instrutiva. As drogas psicotrópicas operam no organismo provocando alterações químicas que ativam mecanismos de prazer e alívio. Plataformas digitais, por sua vez, operam nos sistemas de comportamento — ativando emoções, desejos e impulsos com base em dados cuidadosamente coletados. A diferença está no meio, mas o alvo é o mesmo: a tomada de decisão do indivíduo. Se o vício químico sequestra o corpo, o vício digital sequestra a vontade. Esse novo tipo de dependência se alimenta de comportamentos que parecem inofensivos: deslizar a tela, responder notificações, aceitar sugestões de conteúdo, clicar em uma recomendação. São pequenas gratificações entregues com alta frequência, desenhadas para manter o usuário em um estado de alerta constante. A matéria-prima não é a substância — são os dados. E quanto mais sensíveis, íntimos e contextuais, mais eficazes são esses gatilhos. A recompensa não é mais o êxtase, é o clique, o like, a visibilidade. A tecnologia não apenas reage ao nosso desejo — ela o antecipa e o modela. Esse é o ponto de inflexão. O usuário deixa de ser protagonista e passa a ser predito. Entramos na era da arquitetura da vontade, onde os sistemas sabem o que queremos antes mesmo de sabermos. A escolha, embora formalmente disponível, já vem enviesada, embalada, ranqueada. A autonomia é preservada na aparência, mas diluída na essência.
O mais inquietante é que tudo isso acontece de forma silenciosa, contínua e socialmente validada. Não há ressaca, não há abstinência visível, não há urgência médica. Pelo contrário: o comportamento viciado é premiado com eficiência, relevância e conveniência. O “barato” do século XXI é o sentimento de estar conectado, valorizado e no controle — mesmo que o controle já tenha mudado de mãos.
Esse tema não é sobre tecnologia apenas — é sobre o tipo de sociedade que estamos construindo. Estou propondo uma reflexão sobre essa nova forma de dependência — não para condenar a inovação, mas para questionar onde estão os limites entre liberdade e condicionamento. Porque talvez a pergunta mais séria que devamos fazer não seja “o que estamos usando?”, mas “o que está nos usando?”.