Por Enio Klein
Nas últimas décadas, o Ocidente entregou à China boa parte de sua produção industrial, conhecimento técnico e autonomia estratégica. Tudo em nome da eficiência, do custo mais baixo, da escala. A promessa era simples: crescimento mútuo e abertura política por osmose econômica. A realidade foi outra: fortalecemos um regime autoritário que hoje desafia a ordem global com a mesma tecnologia e os mesmos sistemas produtivos que nós mesmos transferimos. E o fizemos sem exigir contrapartidas reais — nem em direitos humanos, nem em alinhamento regulatório, nem em reciprocidade comercial.
É necessário reconhecer que há competência inequívoca no processo chinês de crescimento. Com planejamento de longo prazo, capacidade de execução e um pragmatismo estratégico impressionante, a China construiu em três décadas o que levou séculos para outras nações alcançarem. Criou hubs de inovação, consolidou cadeias globais de suprimento e formou gigantes tecnológicos nacionais. Nada disso foi fruto de improviso. Mas também não foi isento de custos: o crescimento foi acompanhado de vigilância estatal, supressão de liberdades e um modelo que não se apoia nos valores democráticos do Ocidente.
Agora, diante da revolução da Inteligência Artificial, vejo sinais inquietantemente semelhantes. Estamos entregando, sem muita resistência, nossa capacidade de decidir, interpretar e até pensar criticamente, delegando funções humanas fundamentais a algoritmos que não compreendem contexto de forma adequada, ética ou responsabilidade. E de novo, o fazemos em nome da conveniência, da escala, da inovação acelerada — sem antes estabelecer as salvaguardas que garantam que a tecnologia esteja a serviço da sociedade, e não o contrário.
O que aprendemos com a dependência da China? Que eficiência de curto prazo pode se transformar em fragilidade estratégica de longo prazo. Pandemias, conflitos comerciais, tensões em Taiwan e o avanço da influência chinesa em regiões-chave como África, América Latina e Europa Oriental revelam o custo geopolítico da transferência industrial sem cautela. A dependência da China por insumos, semicondutores, metais raros e manufatura já compromete a autonomia de nações inteiras. Agora, vislumbramos uma nova dependência, mais profunda e invisível: a da inteligência delegada.
Se a IA se tornar o cérebro das nossas decisões — no setor público, na saúde, na educação, no judiciário e nas finanças — quem controlar esses sistemas controlará nossa capacidade de agir e reagir. E esse controle não se limitará a interesses comerciais. Já há indícios concretos de que a IA será, e já está sendo, instrumentalizada por blocos geopolíticos antagônicos como arma de influência, manipulação informacional e dominação tecnológica.
Potências globais disputam o domínio da IA não apenas para promover inovação, mas para reconfigurar esferas de poder. Sistemas de recomendação, propaganda algorítmica, vigilância em massa, desinformação automatizada — tudo isso pode ser usado como meio de controle populacional, ataque à democracia e enfraquecimento de soberanias. A armadilha se fecha quando essas tecnologias são integradas às infraestruturas críticas de países dependentes, transformando-os em reféns técnicos de sistemas que não compreendem e não controlam.
Assim como na transferência industrial para o Oriente, estamos trocando soberania por eficiência, empurrando questões estruturais para o futuro — e, mais uma vez, sem exigir contrapartidas claras. Onde estão os marcos regulatórios robustos? Onde está o debate público? E os limites éticos? A pressa por adoção parece suplantar a prudência por governança.
Não se trata de negar o valor da inovação — mas de lembrar que crescimento sem direção é risco. Ao não questionarmos a quem a IA pertence, quem a programa, com quais objetivos e quais interesses, estamos entregando o futuro da mesma forma que entregamos o passado recente. E dessa vez, talvez sem retorno.
A história não se repete, mas rima. E talvez seja hora de interromper essa música antes que ela se torne irreversível.